Finalmente o dia acabou e posso estar agora em paz no meu quarto, visto que ainda não há nada da escola para fazer e que é preferível ignorar a minha vida social já suficientemente degradada pelo meu contínuo humor de cão desde que aconteceu o acidente, nem que este momento de sossego só dure um bocadinho.
Encontro-me neste momento sentada no meu anormal sofá: uma chapa rectangular e espessa, suspensa do tecto, personalizada com autocolantes, assinaturas e desenhos. Encontra-se coberta com almofadas coloridas, que o tornam muito acolhedor.
Desta vez o telemóvel não está ao meu lado e um pacote de gomas quase vazio ocupa o seu lugar. Tenho as pernas cruzadas com o bloco por cima, onde escrevo desenfreadamente.
Olho para baixo e encontro uma estante, cheia de partituras de tal forma que ameaça tombar e espalhar todas as folhas pelo chão a qualquer momento, no entanto não tenho paciência suficiente para a arrumar.
Lá em baixo, para além de toda a desarrumação habitual, há um pequeno objecto que capta o meu olhar e consequentemente a minha atenção, um violino.
É um modelo Capela, demasiado caro para um instrumento tão pequeno e para o meu talento com violinista. Foi oferecido pelos meus avós quando atingi o tamanho suficiente para ter um violino inteiro e não apenas divididos em quartos.
Lembro-me de quando decidi tocar um instrumento. Foi numa manhã de escola, estava no quarto ano na altura e o meu pai costumava levar-me à escola de carro todos os dias. Como habitualmente eu estava sentada no carro à espera que ele fosse buscar os documentos que se tinha esquecido. O rádio estava sintonizado na TSF, como sempre, uma estação que para mim não tinha o mínimo sentido, porque só falava de coisas desinteressantes para uma criança de 8 anos, como por exemplo política. Por isso tentei sintonizar o rádio noutra estação (escusado será dizer que não percebia nada de rádios e por isso comecei a carregar em todos os botões que existiam), e por acidente parei na Antena 2, onde estava a dar uma entrevista com um violinista chamado Joshua Bell, e quando ele tocou eu fiquei tão impressionada que quis começar a tocar também.
Quando, nesse dia, anunciei ao jantar que queria entrar numa escola de música para o próximo ano os meus pais tentaram que fosse aprender guitarra (o instrumento mais fácil de conseguir tocar algo que pelo menos soasse perto de música) para a escola perto da minha casa mas recusei, já tinha decidido que queria o violino e por isso aos 9 anos matriculei-me no conservatório de Lisboa, e comecei assim a minha carreira musical como uma completa ignorante no mundo da música.
Quando a excitação inicial de estar a aprender um novo instrumento me passou, confesso que comecei ficar aborrecida com aquilo porque era preciso estudar muito, e isso roubava-me (e ainda me rouba) imenso tempo livre.
Passou pela cabeça desistir, mas a Sofia não deixou, a ainda bem, porque agora percebo que a música me tem ajudado muito, não só em ajudar a criar métodos de trabalho, mas também como um apoio para os dias maus. Apesar de ter ficado chateada com ela na altura, hoje agradeço-lhe por me ter incitado a continuar.
Agora toco um bocadinho todos os dias aliás, hoje foi a primeira coisa que fiz quando cheguei a casa. Continua a espantar-me a facilidade com que aquele pequeno objecto musical me compreende, ou pelo menos parece compreender. Nas melhores e nas piores alturas consegue transportar-me para um mundo que reflecte uma realidade controlável, um mundo maravilhoso de conforto e paz que esconde até as maiores tristezas, um mundo que posso caracterizar de puro.
Hoje tocar fez-me bem, porque o dia foi péssimo. Foi o primeiro dia de aulas do 11º ano, o que significa o fim do pouco sossego que ainda me restava.
Sinto-me insegura porque este ano estou numa escola nova, a escola que o meu namorado frequenta, porque assim já podemos estar mais tempo juntos, um problema que nos assombrava o ano passado. Ele está a tentar que eu me sinta bem lá.
Hoje passou por minha casa antes do almoço e fomos almoçar juntos a um café perto da nossa escola, e de seguida fomos juntos enfrentar a primeira aula do ano.
O Jorge estava super entusiasmado com a festa, tão entusiasmado que passou o dia a falar nisso. Não consegui perceber muito bem o que ele dizia, para ser sincera nem o estava a ouvir porque estava demasiado ralada a pensar na minha irmã e numa maneira de hoje a ir visitar ao hospital, os médicos disseram que ela está a piorar e gostava de ir lá para lhe dar força.
Mas os planos saíram furados, primeiro porque o Jorge percebeu que não lhe estava a prestar atenção e começou a reclamar comigo, o que serviu para me deixar ainda mais triste e também porque a aula acabou mais tarde do que o previsto e fiquei sem tempo de ir.
Apesar de tudo o Jorge sentou-se ao pé de mim na aula e acompanhou-me a casa depois.
Quando chegamos a casa deu-me um beijo demorado de despedida ao qual não retribui completamente, sentia-me exausta. Ele pediu desculpa por ter sido tão bruto comigo, mas nem isso consigo fazer-me esboçar um sorriso. Preferia que ele pensasse mais nas acções antes em vez de pedir tantas vezes desculpa depois.
A mãe e o pai chegaram. Apesar de saber que é impossível de acontecer, continuo e ir ter com eles frenética sempre que a chegam a casa a perguntar se há boas notícias.
É irracional, e a resposta continua a ser sempre um triste Não.